quarta-feira, março 02, 2005
sonhos vs. contas de electricidade
Perguntamos a uma pessoa de 60, 70 anos o que fez para não ter feito as coisas que achava essenciais aos 20 anos, e a pessoa provavelmente diz: não me lembro. Se calhar esteve a pagar contas de electricidade. Se não temos cuidado, estamos 50 anos a pagar contas de electricidade. É uma coisa assustadora, a papelada para uma pessoa estar viva. Apetecia-me muitas vezes dizer: não me chateiem, quero só estar vivo.
Gonçalo M. Tavares, in Mil Folhas
Certo dia eu e os meus pais fomos almoçar com um amigo de ambos que, em conversa, me perguntou o que eu queria fazer quando crescesse.
- Música - disse eu.
A resposta surgiu numa das frases que mais detesto ouvir:
- Isso passa-te com a idade.
O senhor em questão foi músico e produtor durante os seus anos de juventude e agora exerce a criativa profissão de técnico de informática.
Nunca suportei adultos que, na amargura de não se terem tornado no que o seu eu de 15 anos queria ser, fazem questão de deitar abaixo os sonhos dos outros. Os sonhos não pagam as contas nem põem comida na mesa - mas isso não implica que tenhamos de abdicar deles.
Há já uns anos que vivo dividida entre o que quero e o que tenho de fazer e, na maioria das vezes, é a última que ganha... o que me ajudou a descobrir formas de contornar a coisa e conseguir arranjar disponibilidade para as actividades que realmente me alimentam a alma.
Penso que a ideia essencial é a de que, se queremos e gostamos mesmo de fazer algo, não importa se é daí que vem o dinheiro, se estamos muito ocupados ou se já somos demasiado velhos para continuar (ou começar). Mesmo que não lhe possamos dedicar todo o tempo desejado, a sensação é tão reconfortante que vale a pena, por meros 5 minutos que sejam.
Quando era mais nova, criticava secretamente a minha mãe por ser tão terra-a-terra e continuar num emprego onde a sobrecarregavam de tarefas, em vez de tirar um curso de Arte e dedicar-se aos trabalhos manuais, ao desenho e à pintura, de que tanto gostava... Agora sei o que a casa gasta - literalmente! -, que até dá jeito ser-se efectiva e estar na mesma empresa há mais de 20 anos e que quando se trabalha das 9h às 18h, quer-se é chegar a casa e descansar.
Mas, justiça seja feita, não era por isso que deixava de desenhar aos fins-de-semana ou fazer trabalhos de carpintaria para a casa.
Temos de ser práticos para sobreviver e pagar contas de electricidade, é um facto. Só não gosto do conformismo.
E não, não me vai passar com a idade.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
7 comentários:
Cresce...
never in a million years. e olha que eu também pago contas de electricidade e ponho comida na mesa.
post espctacular, M! Não me podia sentir mais identificada. (eu acho que afinal na vida passada não fui uma vaca indiana, fui tua irmã! ou se calhar fui mesmo uma vaca indiana mas sendo assim tu também... adiante).
Pagar as contas de electricidade só por si já é um acto que me faz sofrer (por isso é que não o faço tanto quanto devia), sustentar-me sabe muito bem, mas ainda estou à espera do dia em que possa viver à custa daquilo que faz os sonhos dos pequeninos e as frustrações dos grandes.
Um beijinho ;)
magnuspetrus, a minha filha está bem crescidinha, obrigado, e tenho muito orgulho no que ela é
Artur
A jeito de desculpa, coisa que raramente peço, o meu comentário foi apenas uma brincadeira. À maneira portuguesa, se calhar até ponho mesmo as culpas na Sónia, já que ela se quis acusar...
O céu a ouça! Deus queira que continue a ser inconformista, que continue a perseguir e a viver os seus sonhos. É verdade: conciliar pragmatismo e sonho não é impossível, mas pode ser muito difícil. E viver os sonhos pode revelar-se a escolha errada: conheço gente que o fez mas que, pela teimosia em viver o sonho, acabou por perder outras coisas que achava preciosas, nomeadamente a família. E não são gente feliz.
Felizmente a escolha não se revela sempre tão desastrosa. O que seria de nós sem os sonhos? O que seria de nós sem um cant(inh)o na nossa vida onde possamos ser nós mesmos, entregar-nos ao que gostamos sem ter de pensar nas contas da electricidade? "Pelo sonho é que vamos", disse o poeta. Eu, que tive a sorte de fazer o que gosto e de conseguir juntar os meus sonhos à realidade (claro que sonhei ser milionária mas... esqueçam!), que me considero uma pessoa realizada, tenho também a consciência de que sou uma privilegiada. E acho que é meu dever ajudar os sonhos de outros a tornarem-se realidade: por isso apoio a música das minhas filhas (e não gostaria que "isto" passasse com a idade), por isso dou aulas numa escola de teatro, por isso acompanho ensaios. É um prazer sentir que se ajudou um sonho a crescer. Mesmo que não seja o nosso...
oh magnus, se não te conhecesse de gingeira até era capaz de ter ficado chateada... Achas mesmo que eu, algum dia, te levei ou levarei a sério? :P
p.s.: e, sim, a culpa é toda da Sónia, lol.
Enviar um comentário