terça-feira, outubro 19, 2004

geração call center

Texto que o meu pai escreveu inicialmente para outro blog (traidor...!), o Truca, que podem encontrar nos links. A única coisa que tenho a acrescentar é que, no que toca à minha experiência corrente - apoio ao cliente - o espaço de manobra em relação ao contacto com o cliente é maior do que no telemarketing: nós sabemos mesmo tudo e somos todos-poderosos...!
Mas passo a palavra ao meu pai:

A geração call center

São centenas de jovens trabalhadores, e alguns já não tão novos como isso. Estudantes universitários, procurando num part-time um subsídio para as propinas e para os livros, licenciados em psicologia, antropologia e "letras", assistentes sociais…
Trabalham em salas segmentadas em cubículos como colmeias, diante de um computador que os liga aos clientes e lhes apresenta o script do que têm a dizer e como argumentar. Foram recrutados por empresas de trabalho temporário e são a voz de empresas que nunca visitaram.
Esta "geração call center", como a minha filha lhe chama, todas essas Martas da OK Teleseguros e afins, representam uma força de trabalho crescente, uma ferramenta de marketing ao serviço das principais empresas, e vai ganhando um conhecimento do país real que nenhum tratado de gestão ou sociologia lhes poderia dar.
Um país real de cidadãos que não sabem como dar voz às queixas que querem apresentar, que nada percebem do equipamento que compraram, que se sentem perdidos por falar para uma voz ao telefone quando o que queriam era alguém que os visse e a quem pudessem falar cara a cara.
"O mê marido nã tai, foi tirar lête", "os meus pais foram para as vindimas, só voltam lá para o fim do mês", velhinhos isolados no interior, na maioria analfabetos e arfantes de qualquer doença brônquica, que remetem a decisão sobre o novo serviço que lhes é apresentado para quando os filhos os forem visitar e contam as suas mágoas, dores e solidão, ocupando tanto mais tempo a linha telefónica quanto menos a vida se tem ocupado deles. O mercado real do consumidor do produto, fora daquela invenção cosmopolita dos modelos do Image Bank, gente real com pagamentos em atraso dos seguros, dos Visas, da televisão por cabo.
Gente para quem a empresa a quem compraram o produto ou serviço é aquela voz, a quem agradecem o restabelecimento da ligação à Net, uma tabela de preços mais simpática ou a concessão do pagamento de uma dívida em quatro prestações; voz que insultam quando estão irritados com a empresa, voz que acham que deve saber tudo quando a voz só tem um pequeno script no écran que tem de seguir sem falhas porque as conversas são monitoradas por supervisores a quem têm de pedir licença para ir à casa de banho.
Vozes que vão dizendo "Daqui fala a Marta" enquanto o sonho de um emprego a sério vai morrendo debaixo dos auriculares e diante do script.

Artur Tomé

3 comentários:

Anónimo disse...

Parabens por este texto, além do mais consegue aparecer nos 1º´s link´s do google, não sei se foi publicado em algum sitio, mas acho que devia ser, num jornal, revista mas publiquem... é digno de ser ligo...mas já agora poderiam fazer referencia a outras situações mais graves ainda, e todo o problema social que há a volta disto, pessoas sobrequalificadas, sobrecarregadas de trabalho, e um trabalho que não é regulamentado e que pode inclusive levar a problemas de saude graves simplesmente porque as grandes empresas, milionárias, sedentas de lucros, decidem poupar..poupar não é o certo, elas decidem ganhar mais ainda, então poupam nos recursos humanos atribuindocada vez mais tarefas e pondo objectivos cada vez mais altos aos operadores, até eles sentirem que é humanamente impossivel cumprir com tudo aquilo que lhes é exigido sem reservas..sempre em prol de tornar uma empresa rica, mais rica ainda, os ordenados baixos, direitos sociais quase nulos, são trabalhadores descartáveis.... não tem direito a crédito na sociedade, por serem descartáveis...representam um risco maior...
Estes trabalhadores sofrem de esgotamentos, otites crónicas (partilha de head set´s) , entre outros....
Vamos todos ser operários, dar a ganhar aos que já tem e viver no limiar da pobreza, 500€ quem vive com 500€????
E anunciam com todo o orgulho para todos nós "criação de de novos postos de trabalho , governo ajuda (as empresas milionárias) na criação de "x" novos postos de trabalho" essas grandes empresas, deviam criar 2000 postos, criam sim , mas despedem outros 1000 em outra zona do pais, esfregam as mãos, e na realidade só criaram mil, postos de "operarios" que nós agradecemos muito, criados com o nosso dinheiro, trabalho esse em condições precárias mais uma vez, e temos orgulho ainda por cima... isto não é aceitavel... CHEGA FAÇAM ALGUMA COISA!!!!!!!!!!

José Sousa
jm.alves.sousa@gmail.com

Unknown disse...

Lindo, meu amigo Tomé.
Publica isto. Fala de muito mais do que os call centers. Fala do desemprego e da solidão, de analfabetismo e do nosso psís abandonado por si próprio, o nosso país magoado e sem forças, comprando sem dinheiro para comprar, fazendo perguntas a quem não sabe responder-lhe, o nosso país envelhecido à espera que os filhos o visitem.
Um abraço
Isabel

Anónimo disse...

Tenho 18 anos, este ano vou ingressar no curso de Engenharia Mecânica e vivo com a minha namorada. Trabalhamos os dois num call center avaliado como o "melhor do país". Atendemos mais de 10 linhas, não temos scripts - tivemos em vez disso um treino intensivo de atendimento ao cliente, pesquisa e organização de informação, gestão de conflitos e no fim das chamadas, além de encaminharmos os clientes para um inquérito de satisfação (que serve como complemento às escutas de avaliação que nos fazem), temos de vender um produto.

Pagam-nos 2.76€ por hora, 2.14€ de subsídio de alimentação, e os subsídios de férias e de natal são divididos por todos os meses para disfarçar o facto de sermos profissionais altamente qualificados que legalmente recebem 242,5€ por mês. E quando a minha mãe, que vive do outro lado do Atlântico, não puder pagar-me as propinas?